terça-feira, 15 de maio de 2012

África por um africano




No limiar do terceiro milênio, qualquer um que olhar ou quiser se interessar pela África, não pode dispensar-se de refletir seriamente sobre as causas profundas, internas e externas, que provocam os conflitos, que continuamente funestam e empobrecem o continente em todos seus aspectos.

   Terra de todos e de ninguém

   Muito frequentemente, a África é apresentada pela mídia (sobretudo do Ocidente) como um mundo atormentado por conflitos, guerras tribais e civis; ou também como o continente da fome, castigado pelo subdesenvolvimento, necessitado de tudo. Segundo o recente Programa Alimentar Mundial (WFP) e African Hunger Alert, pelo menos 38 milhões de africanos estão em situação de risco, sobretudo na região subsaariana e particularmente na Etiópia.

Sem esquecer a desertificação, que se soma às tantas feridas do continente. Outro fenômeno desastroso é a epidemia da Aids, que dizima as populações, especialmente os jovens, pondo em risco a própria sobrevivência futura do continente. Existem hoje na África milhões de refugiados, que vão do Sudão ao Burundi e à Ruanda, de Angola à Serra Leoa e à Libéria, da Costa do Marfim à Somália... e poderíamos continuar a lista.

A maioria deles desconhece o verdadeiro motivo de seu exílio, fundamentalmente baseado sobre causas políticas e econômicas, que os despojam do necessário. Estamos, portanto, diante de uma África de desamparados, de pessoas que não têm pátria, não têm alimentos, embora sejam ricas de todos os bens; que são destituídas até da própria dignidade, apesar de terem sido os antepassados da humanidade. Uma África pobre e mendiga, levada à miséria pelas mesmas razões políticas que difundem uma cultura de corrupção e de mentira através do continente. Com o desgoverno, muitos políticos contraíram dívidas externas absurdas, a ponto de tornar impensável a esperança de um futuro melhor e de um bem-estar plausível.

Praticamente, tratar-se-ia de uma África que nada conta, que pode não valer nada e que nem deve valer nada. Ao mesmo tempo, estamos convencidos de que a África não é, e jamais deveria ser, um “terreno de jogo” para as potências econômicas e as multinacionais e, menos ainda, uma abstração, porque ela se apresenta, de fato, seja como o berço da humanidade (basta pensar na herança universal de Tebas e de Alexandria, no atual Egito, e de Cartago, por exemplo), seja como sofredora (onde a vida se tornou difícil em todos os níveis) e, hoje, como terra da promessa, pois contém grande parte dos recursos naturais e alimentares da humanidade. A África se apresenta, assim, como terra de todos e de ninguém.

Atividades sociais, comunitárias e religiosas nas aldeias


No contexto da globalização, perguntamo-nos:


- que lugar ocupa o continente e qual é seu papel para o próprio desenvolvimento? Seria necessário saber se, em tal processo, a África assimila ou se é assimilada; se é considerada como mercadoria, e que, portanto, fica sujeita às leis do mercado, e a que preço está avaliada.


A outra África


Existe, porém, uma outra África; a dos valores humanos e espirituais, que muitos desejam guardar como uma cultura e uma riqueza a serem oferecidas à humanidade. Fala-se também da fuga de cérebros. De fato, muitos intelectuais, que suscitam muitas esperanças no seu povo, vivem em outros continentes por razões políticas, econômicas ou culturais.

A África tem, pois, a capacidade de virar a página e de dar novo sentido à sua história. A mudança política de governo em alguns países, por exemplo, no Quênia, na África do Sul e no Senegal, é semente de esperança para uma nova África, almejada por todos, e que só será edificada com a contribuição de todos, inclusive com os da diáspora.

Alguns nomes excelentes podem ser citados como sinais de esperança:

Wole Soyinka (prêmio Nobel de Literatura), Ki Zerbo (historiador), Nelson Mandela (prêmio Nobel da Paz e ex-presidente da África do Sul), Kofi Annan (Secretário-Geral da ONU), a senhora Wangari Maathai (prêmio Nobel da Paz). Eles são uma contribuição preciosa para a civilização africana e para a edificação de uma nova humanidade. É certamente possível estimular o progresso e a pesquisa para o desenvolvimento do continente em todos os aspectos:

→ cultural, econômico, político, baseando-se na própria mentalidade africana. A civilização africana tem origem comum e é urgente reconsiderar este aspecto para seu desenvolvimento. A atual divisão política africana foi um ato de arbitrariedade do colonizador.

As fronteiras impostas por ele secionaram tribos e dividiram etnias, transformando-as em inimigos comuns. Os especialistas consideram o período colonial na África como a época da morte de suas grandes culturas e civilizações. A instabilidade política de muitos países nasceu naquela época. O colonialismo, porém, não conseguiu criar uma nova civilização ou cultura africana. O que o sistema colonial criou foi uma estrutura superficial, sem qualquer raiz profunda na cultura africana original. É necessário retornar a esses espaços culturais para redescobrir a identidade africana, sobre a qual construir um futuro sólido, um progresso que corresponda ao caminho gradual do povo.

É, pois, possível recuperar a harmonia, a paz e a unidade na sociedade africana, revalorizando as instituições sociais de base, reabilitando as figuras carismáticas, como as dos chefes tribais e líderes de aldeias, que, mesmo respeitando os atuais sistemas de governo (com chefes-de-estado e chefes-de-governo), e neles se integrando, permanecem – todavia – como verdadeira referência na organização social africana. 

Seria também desejável seguir o exemplo de alguns países, como Camarões, em que os governantes introduziram o sistema político duplo, quer dizer: a câmara dos chefes tradicionais ao lado da dos deputados. Tal mecanismo evita que os governantes deslizem para um “Estado de Poder” ou um “Estado de Governo Autoritário”, o que torna possível estabelecer-se um modelo de governo em que política e economia estejam completamente a serviço dos cidadãos, um modelo de governo “à africana”.

Devemos elogiar o trabalho realizado pela OUA (Organização da Unidade Africana) – ver box, pág 24 –, mas ainda não se concretizou o “milagre econômico” continental e nem um sistema monetário único para a África toda. Na área econômica, muitas ações já foram realizadas: o lançamento do Mercado Comum da África Austral e Ocidental (COMESA); o espaço de Livre Comércio no contexto da Comunidade da África do Norte; as decisões sobre o sistema monetário, tomadas e adotadas pela Comunidade Econômica dos Estados da África do Oeste (ECOWA), que levaram à elaboração de um protocolo de intenções entre a Comunidade Econômica Africana e as Comunidades Econômicas Regionais.


Processos de unificação


A novidade, hoje, é o nascimento da União Africana, por ocasião da celebração do 38o aniversário da OUA, em Adis-Abeba (Etiópia). Se a OUA exerceu um papel preponderante na libertação dos países de condicionamentos coloniais, nos anos sessenta, e os levou à independência do Ocidente (pelo menos de maneira formal), o novo organismo – a União Africana – tem a tarefa de libertar o continente do neocolonialismo político e econômico deste mesmo Ocidente que, através da globalização, agora tende a controlar os processos econômicos dos Estados africanos independentes.

A criação de um Parlamento Pan-Africano (PAP) é de capital importância, como também o é a criação de um sistema monetário africano único:

- um Banco Central Africano e uma única moeda para as operações econômicas com todos os sistemas monetários do mundo. Atualmente, mais de 80% dos chefes-de-estado e de governo africanos já aderiram ao projeto da União Africana, a existir, de direito e de fato, quando os membros da OUA ratificarem a Constituição redigida para esta finalidade. A primeira conseqüência positiva da União Africana será derrubar as fronteiras geográficas entre os países africanos. Cada pessoa sentir-se-á cidadã africana. Poderá circular livremente de um país a outro e estabelecer vínculos culturais, políticos e econômicos com todos.

A criação de uma moeda única acabará com a exploração das nações por parte das multinacionais e determinará o valor das matérias-primas para todos os países da União. Isso permitirá um crescimento econômico expressivo no interior de cada nação em relação a seu produto interno bruto. O preço das matérias-primas poderá, assim, ser uniformizado para todos os países da União. A exportação dos recursos será regulada pela União e não será mais concebível que as riquezas de uma nação estejam em mãos de poucos. Uma comunhão, ou partilha de bens, será possível entre os próprios países que, unidos, combaterão o fenômeno da pobreza, na qual está mergulhada, e sem saída, elevada porcentagem da população. As relações entre a União Européia e a União Africana e com os Estados Unidos serão transparentes e será possível colaborar em diferentes esferas: educação, saúde e economia.

De fato, o dr. Geremia Scianca, representante da Comissão Européia, afirmou que os problemas da educação e da saúde são as realidades principais a impedir o verdadeiro desenvolvimento nos países da zona África-Caribe-Pacífico. Cada país poderá desenvolver uma política de auto-suficiência e, assim, reduzir a pobreza, implementando os direitos humanos no respeito à justiça. Sem tais garantias, os países africanos não poderão acompanhar os países ocidentais no contexto da globalização. Ao redor da União Africana nasceu a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD), que, em sintonia com a ONU, mobilizará os esforços a fim de sustentar o desenvolvimento dos países menos favorecidos do continente, com o objetivo de ajudar a integração aos parceiros desenvolvidos, promovendo, assim, o diálogo e novas formas de cooperação internacional.

Hoje, no processo de globalização, todos estão conscientes sobre a necessidade de interdependência:

- o Ocidente e o Oriente precisam da África, assim como também ela necessita tanto de um, como do outro. Porém, se alguns países não forem realmente autênticos no relacionamento com os outros, há o risco de apresentarem um rosto falso de si mesmos e, assim, anularem valores e riquezas, que a própria diferença cultural tem a oferecer, para a fundação de uma comunidade mundial, alicerçada sobre a cooperação, a solidariedade, a partilha, a paz, a justiça e a comunhão.


A Organização da unidade africana


A Organização da Unidade Africana (OUA, organização dos governos e dos chefes-de-Estado africanos) obteve sucesso na sua função porque alicerçou-se sobre sólidas bases culturais do continente. Confira alguns resultados já obtidos: a luta pela independência, pela igualdade, liberdade, dignidade, solidariedade e progresso social; contra a escravidão, o colonialismo, o apartheid e o racismo de governos minoritários, a injustiça e o derramamento de sangue; a solução do conflito entre a Etiópia e a Eritréia; a intervenção na República Democrática do Congo, que levou à convenção de Lusaka; a busca da paz em Serra Leoa; a restauração da paz na República federal islâmica das ilhas Comores; a conferência de paz de Arta em favor da reconciliação na Somália. Atualmente, a OUA está engajada na resolução de conflitos e em responder às necessidades do continente.

Limitemo-nos a pensar nos países da bacia do rio Mano (Serra Leoa, Guiné e Libéria); na situação do Burundi, da qual se ocuparam as negociações de paz de Arusha; no aconselhamento dado aos conflitantes de Angola e no sul do Sudão. O organismo também se preocupa com doenças, principalmente com o vírus da Aids, sem negligenciar o problema da malária e da febre hemorrágica, que ainda ceifam muitas vidas. A OUA desempenhou destacadas funções no processo de democratização dos países africanos, ajudando-os a passar de monarquias autocráticas a formas e sistemas participativos da população à vida política da nação.

Entre os principais avanços culturais, creditados às instituições da OUA, podemos citar: a independência total de quase todos os países africanos; a promulgação da Carta Africana de direitos humanos e dos povos, como complemento das constituições nacionais; o processo de democratização de sistemas políticos, como a superação de governos de partido único, por exemplo.


Um africano ao
encontro do outro
por Martin Nkafu Nkemnkia


Venho da República dos Camarões. Sou membro da etnia bangwa, na região ocidental do país. Nasci numa família numerosa de 23 filhos e, como se pode imaginar, desde a infância até a maioridade, vivi sempre em contato com muita gente, a ponto de não saber o que é solidão. Vou expor, em cinco pontos, meu encontro com a alteridade à luz da comunicação africana.

A vida na família e com os amigos

A cultura africana é uma cultura comunitária:

- o sujeito social não é o indivíduo, e sim a comunidade. É na comunidade que recebemos nossa formação de cidadãos, que somos formados nas tradições, que aprendemos nossa língua e amadurecemos nossa identidade pessoal e cultural. Acho que nossos pais fizeram o melhor, tanto quanto possível, para nos educar aos valores constitutivos de nossa cultura.

Entre os que permanecem vivos em mim estão:

- o valor da família, da hierarquia dos membros do mesmo clã e da sociedade. Tais riquezas passam dos pais para os filhos e sua culminância repousa nos antepassados. São estes que nos inserem na sacralidade da vida e no sentido religioso da existência. Dentro disso tudo, cada qual tem um papel indispensável a cumprir na comunidade. Considerando o agir das pessoas, as atitudes nos diferentes momentos da vida diária, o próprio calendário da semana, do mês e do ano, tudo predispõe a festejos comunitários. Os aniversários e os onomásticos representam momentos especiais para todos festejarem comunitariamente.

Festejar, para nós, é importante em função da vida da família e da comunidade; por isso, eu nunca faltava a uma festa na aldeia e às organizadas nas famílias dos meus amigos. A festa, para mim, continua sendo um lugar da fraternidade, da partilha e da reciprocidade, porque nela reina a alegria, percebida nos rostos, onde a tristeza desaparece. Nesses momentos, a comunicação envolve todo o ser da pessoa e da comunidade. Também o corpo se torna veículo da comunicação através da dança, da música, etc. Assim, a festa é critério de avaliação da capacidade pessoal para se relacionar com os demais.


Artesanato e momentos da vida diária de alguns povos africanos

O encontro com outros povos e culturas ocidentais

Tendo freqüentado escolas católicas, tive a possibilidade de ampliar meus conhecimentos e começar a ver para além das fronteiras da minha terra. Nosso conceito africano de “irmão/irmã”, apesar de dilatado, não ultrapassava os limites da tribo. A idéia que o mundo é uma família, e que todos os homens da terra são irmãos e irmãs, foi-nos comunicada pelo cristianismo.

Compreendi que, fora da minha tribo não existem apenas soldados de outras tribos, mas que eles são também meus irmãos. Uma experiência especial marcou-me durante a adolescência. Eu tinha 16 anos quando alguns médicos, membros do Movimento dos Focolares, convidados pelos chefes do nosso povo, chegaram à nossa aldeia para combater a mortalidade infantil que, na época, atingia a maioria das crianças.

Seu empenho e testemunho, além de debelar a mortalidade infantil, marcaram o início de uma nova era para nosso povo. Como eu, muitos jovens sentiram-se atraídos pela mensagem cristã, que caracterizava a vida de tais médicos, e desejavam viver o Evangelho como eles. Porém, nossos povos tinham péssima lembrança da história e do encontro com os ocidentais, que haviam deixado sinais dolorosos: tráfico dos escravos, colonialismo, etc.

Tal domínio originou o conflito entre o mundo africano e o ocidental. Não existia confiança no relacionamento com os europeus, até quando isso parecia indispensável. Havia o medo de iniciar um diálogo entre as duas culturas. Mas aqueles brancos, por sua maneira de ser e de agir, derrubaram completamente nossos preconceitos, fazendo brotar entre todos um clima de amizade e de fraternidade universal. Eles tinham o espírito evangélico, que a todos abraça.


O encontro com outros povos e culturas do mundo

O encontro e a convivência com os membros do Movimento dos Focolares, provenientes de diversos países da África, da Europa, da Ásia e das Américas, tornou-se, para mim, uma chance de ouro para a percepção da própria identidade como cidadão do mundo. Não faltaram dificuldades, mas o desejo de pertencer ao mundo foi mais forte. “O rosto do outro” tornou-se cada vez mais o espelho para minha identidade. Minha cultura africana renasceu, ao me encontrar com as outras culturas do mundo.

Vivendo o Evangelho no dia-a-dia, amadureceu em nós a visão pluridimensional da realidade, que nos une a outros povos do mundo para a formação do cidadão do amanhã. Mas vigiamos sempre sobre nosso relacionamento recíproco. Queremos chegar ao conhecimento e à aceitação do diferente, porém sem reduzir a cultura alheia à nossa própria cultura; queremos cultivar o processo de integração e o diálogo, de maneira a preservar a identidade original de cada um, embora adquirindo, ao mesmo tempo, a novidade que cada cultura oferece.


“Vitalogia africana”

Minha estadia na Itália, por motivos de estudo, marcou-me como uma passagem sem volta. Como eu, muitos jovens africanos invejam o Ocidente pelo desenvolvimento do saber. Quase todos os ocidentais que eu conhecera na África eram profissionais especializados e ocupavam os cargos de maior responsabilidade. Sua ciência consentia isso. Quando me matriculei na faculdade de filosofia para perscrutar a profundidade do pensamento ocidental, sonhava, como todos os estudantes, em me tornar um grande filósofo e, assim, contribuir para o conhecimento do mundo e me aproximar aos mistérios da verdade, fundamento de cada identidade individual-pessoal.No transcorrer dos estudos, reparei, aos poucos, que eles me levavam, sim, a um conhecimento profundo da realidade, visto, porém, apenas pela ótica ocidental.

E me posicionei em atitude crítica frente a isso. Minha intenção era de aprender algo novo, mas também de doar algo da minha cultura. Participei de atividades interculturais em congressos, seminários, fóruns. Cheguei, na época do doutorado, a criar o neologismo “vitalogia africana”, expressão que designa a maneira africana de traduzir o pensamento humano, semelhante ao conceito ocidental de filosofia, mas que também se distingue dele. De fato, a primeira forma de interrogação sobre o homem, pela lógica africana, é uma questão sobre a vida. A resposta é que se pode encontrar o sentido da vida quando se compreende o sentido do outro, através da categoria de relação.


Dicionário intercultural

Agora estou dando minha contribuição ao processo de comunicação e diálogo intercultural, disseminando a cultura, o pensamento e a religião africanos, através de diferentes cursos em universidades eclesiásticas de Roma. Não podia escolher lugar melhor para isso, pois, em cada dia, é possível experimentar, com estudantes de todos os continentes e áreas culturais, as maravilhas das diferentes culturas.


Iniciamos juntos um empreendimento incomum:

- um dicionário intercultural, onde cada um define o mesmo termo, ou expressão, a partir da sua área cultural. Já percebemos que o pluralismo cultural deveria ser procurado na forma como são entendidos os valores nas diferentes culturas, e não na condição humana, que é uma só.

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